8.4.14

Ainda haverá salvação para o transporte ferroviário de passageiros em Portugal?

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O cidadão mais distraído verá na decisão tomada pelo Governo sobre os investimentos em infraestruturas de transportes, cuja lista foi divulgada hoje, uma tentativa de relançamento da ferrovia em Portugal. Mas o que ela vem confirmar é que o transporte ferroviário de passageiros está a caminhar inelutavelmente para a morte no nosso país, em oposição com o que sucede na Europa. Sem surpresa, aliás, porque não é senão a continuação da desastrosa e insustentável política de mobilidade prosseguida pelos sucessivos governos, desde que Cavaco Silva, enquanto primeiro-ministro, decidiu que o bom era pôr os portugueses todos a andar de carro, relegando para o transporte ferroviário - considerado “ultrapassado” a não ser em bonitos discursos de circunstância - um papel absolutamente secundário e a caminho da irrelevância. Isto nas linhas férreas que escaparam aos encerramentos, pois, como se sabe, muitas regiões do país deixaram pura e simplesmente de ter acesso ao comboio.  

Claro que subsistirão sempre uns restos de ferrovia, nas linhas suburbanas e no corredor Lisboa-Porto (linha do Norte), mas pouco mais do que isso.

O Quadro Comunitário de Apoio 2014-2020 era, muito provavelmente, a última oportunidade para salvar o transporte ferroviário de passageiros em Portugal. Não que houvesse muito dinheiro disponível para o efeito, mas aquele que podia ser destinado à ferrovia talvez fosse suficiente para começar a relançar verdadeiramente este modo de transporte.

O relatório do grupo de trabalho para as grandes infraestruturas, apresentado no final de Janeiro, tinha defendido que se deviam gastar 600 milhões de euros em estradas. Era um monumental disparate, num país que já tem a 4.ª melhor rede de estradas do mundo e a 2.ª melhor da Europa, mas, apesar disso, o Governo, não contente com os 600 milhões, decidiu que se devem gastar 50% mais, isto é, 900 milhões de euros, repartidos por 10 projetos, que incluem, para não variar, autoestradas sem tráfego suficiente para justificar a sua construção (erros que se repetem, e repetem, e repetem…), continuando-se a fomentar um modelo de mobilidade insustentável e que contribui muito fortemente para o endividamento do país.

Esses 900 milhões de euros fazem muita falta à ferrovia. Por outro lado, o Governo propõe-se investir, nos próximos 7 anos, 2600 milhões de euros em linhas férreas, repartidos por 12 projetos, mas o grande grosso deste investimento destina-se a fomentar o transporte de mercadorias, e não o de passageiros. Incluem-se neste âmbito os 900 milhões de euros que se pretendem gastar em obras no corredor Aveiro-Vilar Formoso, com correção de traçado de modo a permitir a circulação de grandes comboios de mercadorias (com mais de 750 metros de comprimento); os 800 milhões de investimento no corredor Sines-Caia, designadamente a construção da linha de mercadorias Évora-Caia; ou os vários investimentos na eletrificação de ramais de ligação a portos e a fábricas de empresas privadas, como as cimenteiras e as celuloses (ramais privados nas linhas do Oeste, do Sul, do Minho e do Norte).

É, pois, no transporte de mercadorias que se concentra o investimento decidido. O que sobra para o transporte de passageiros é menos do que o que se pretende gastar em estradas e é manifestamente insuficiente para relançar o que quer que seja. Na linha do Minho, o investimento de 145 milhões, feito também a pensar no transporte de mercadorias, resume-se à duplicação do troço entre Contumil e Ermesinde (6 km) e à eletrificação do troço Nine-Valença e de vários ramais de mercadorias de empresas privadas. Os 400 milhões de euros destinados à conclusão da modernização da linha do Norte (um terço da principal linha do país continua por modernizar) são um investimento importante, mas que não resolve o problema da saturação da linha (bem mais grave do que o da velocidade). Para a linha do Oeste, que poderia constituir a grande alternativa à linha do Norte, não se prevê mais do que a eletrificação e a instalação de nova sinalização, apenas um remendo que não mexe no essencial e que dificilmente chegará para reverter o processo de morte lenta em que está mergulhada. Fazendo uma comparação grosseira, é quase como colocar um tapete novo numa velhinha estrada nacional: talvez permita algum aumento da velocidade de circulação, mas não resolve nenhum problema de fundo, nomeadamente quanto às deficiências de traçado. Isto é incompreensível ao mesmo tempo que se planeia gastar quase mil milhões de euros em estradas.

Os males do transporte ferroviário não se ficam, claro, pela falta de obra em linhas férreas. Continua a não existir um funcionamento em rede e um plano integrado e coerente para a ferrovia portuguesa (tal como continua a não existir, em geral, um plano minimamente coerente para a mobilidade). Os investimentos feitos na década passada na modernização e/ou eletrificação de várias linhas férreas são o exemplo perfeito de que é preciso mais do que gastar dinheiro em obras para se relançar o transporte ferroviário em Portugal (aliás, o próprio relatório do grupo de trabalho sobre as grandes infraestruturas de transportes chamou a atenção para isto). Por exemplo, as linhas do Sul e de Évora foram modernizadas e têm excelentes padrões de velocidade (velocidades máximas que atingem 200 km/h), mas nos respetivos eixos são o carro e o autocarro que predominam nas deslocações, sendo o comboio residual. Ligações inexistentes ou insuficientes com outros meios de transporte, preços, frequência de ligações, horários, condições de transporte, estações fechadas, são alguns dos problemas que afastam as pessoas do transporte ferroviário. Mas nada se faz para os resolver, porque não há uma política de transporte ferroviário no nosso país. 

Perde-se talvez a última oportunidade para o relançamento do transporte ferroviário de passageiros em Portugal. E um dia teremos de explicar aos nossos filhos e netos como é que deixámos destruir a rede ferroviária portuguesa, enquanto na Europa se apostava no transporte ferroviário.

(P.S. Neste texto, e por especial simpatia, parte-se do princípio de que os investimentos anunciados pelo Governo para a ferrovia se farão mesmo, ignorando-se o historial de investimentos anunciados, mas nunca concretizados…)
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